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Bebê Rena, ou a encruzilhada de um comediante decadente

A série "Baby Reindeer" revela a perturbadora história de Donny Dunn e sua stalker, Martha Scott, explorando temas de assédio e obsessão com uma intensidade de tirar o fôlego. Com atuações impecáveis e uma narrativa envolvente, a minissérie britânica rapidamente conquistou um lugar de destaque na Netflix. Descubra como esta trama real e assustadora nos mantém presos à tela, questionando a tênue linha entre realidade e ficção.

Baby Reindeer

9 minutos

Entre zapeadas nas plataformas de streaming, apareceu insistentemente o anúncio da série "Bebê Rena" ou "Baby Reindeer" em inglês, e confesso que a princípio não a achei nada atraente. Pouco a pouco, fui ouvindo comentários de alunos e amigos, e alguns, sabendo que adoro (boas) séries, insistiram para que eu a assistisse. Confesso que fiquei surpreso com o produto apresentado.

A minissérie conta a história do relacionamento muito perturbador de Donny Dunn com Martha Scott, uma "stalker". Este é um novo termo criado na língua inglesa para pessoas que seguem ou perseguem de maneira constante e com ameaças físicas ou psicológicas outra pessoa nas redes sociais.

Assim, Martha, aos poucos, vai se intrometendo na vida e privacidade de Donny, perseguindo-o constantemente, assediando-o no trabalho, na rua, em casa e até mesmo na casa dos pais.

A primeira temporada consta de sete episódios e o roteiro foi escrito pelo ator escocês Richard Gadd e produzido no Reino Unido em 2023, com episódios de 28 a 45 minutos. Estreou em abril deste ano na Netflix.

Trata-se de uma comédia de humor "cringe", um termo de origem inglesa que se refere a situações desconfortáveis e constrangedoras vividas por determinada pessoa.

Nesse sentido, "Baby Reindeer" mostra a força de sua mecânica: se é difícil classificá-la em um gênero, é porque a série desenvolve uma narrativa que traz uma cor própria e nos prende à poltrona, atentos ao desenrolar da bem-bolada trama.

Na minha opinião, as séries britânicas vêm provando há muito tempo que não deixam nada a desejar em relação às americanas, em termos de escrita, tom, ritmo e realismo. O exemplo mais recente é essa própria série "Baby Reindeer”, que surgiu do nada e que acaba de subir, graças ao boca a boca, ao topo do top 10 global da Netflix. Na encruzilhada da comédia (negra), do drama (pesado) e do suspense (absolutamente arrepiante), confrontando descaradamente temas que ainda são tabus em uma sociedade onde as vítimas de abuso são livres para falar, esta minissérie alcançou, portanto, um resultado inesperado.

Para sua primeira série, Richard Gadd (que criou, escreveu e interpretou) junta-se a suas compatriotas Michaela Coel (I May Destroy You) e Phoebe Waller-Bridge (Fleabag) em interpretações muito convincentes e de grande carga emocional.

Teoricamente, o roteiro foi inspirado em um fato verdadeiro, e devemos reconhecer que esta história é suficiente para gelar o sangue. A menção à veracidade dos fatos apresentados aparece na abertura do primeiro episódio e o resto mostra que o mundo real contém mais histórias malucas do que a nossa imaginação pode produzir.

O resultado também levanta muitas questões sobre a quantidade exata de realidade nesta fatia tão perturbadora da vida regida pelas mídias sociais.

Conhecemos o protagonista, Donny, enquanto ele preenche um boletim de ocorrência. A coisa mais próxima que ele, um comediante fracassado, chega da fama é que ele está com seu perseguidor, pois um trauma do passado afeta Donny, que olha a situação diretamente nos olhos do espectador, revivendo, através de seu personagem, a situação violenta e tóxica que ele próprio sofreu. O tom é estritamente dramático e altamente brutal.

Donny conheceu Martha (Jessica Gunning) no bar onde trabalha nas noites em que não é vaiado no palco onde "tenta" ganhar a vida como comediante.

A senhora, vinte anos mais velha que o rapaz, com aparência extremamente triste, à beira do choro, não tem dinheiro para uma xícara de chá – embora se apresente como advogada. Daí que o primeiro sentimento de Donny por ela seja de grande pena. Entretanto, em questão de segundos, Martha muda completamente de humor e começa a gargalhar. Isso intriga muito o jovem Donny, que imediatamente recebe o apelido de Baby Reindeer.

A armadilha se fecha assim que a xícara é servida e, a partir daí, uma longa sequência de assédio e perseguição se inicia.

A série conta a história dos efeitos da perseguição neurótica e obsessiva, levando a consequências destrutivas de humilhação insuportável.

As atuações do protagonista e do antagonista são irrepreensíveis. Jessica Gunning acaba sendo totalmente confiável na pele da psicopata e Richard Gadd também encarna primorosamente seu bode expiatório fracassado.

A qualidade da forma e do conteúdo explica porque a produção sinistra rapidamente se tornou uma das mais populares na Netflix. Obviamente, há mais do que apenas uma história de sadomasoquismo ou mestre e escravo nesta história. A tortura mental, aliada aos ataques físicos, é perturbadora desde o início porque inverte os papéis habituais de gênero: aqui, é uma mulher que viola um homem e não o contrário, como exigiria a lealdade ao mundo real. Além disso, a série também relaciona agressões sexuais cometidas por um homem para restabelecer a verdade simples, mas detestável, neste assunto.

O relacionamento romântico de Donny Dunn com Teri (interpretada por Nava Mau), uma mulher trans, acrescenta complexidade à indefinição de gêneros. A história também é chocante porque investiga o que está profundamente enterrado na dupla, pois ali eles discutem abertamente muitas questões sobre a relação entre ficção e realidade.

Teria Martha sido realmente tão cruel em seu assédio? Onde começa o drama e termina a ficção nesta história? Por mais que a arte seja abstração, uma obra não é necessariamente a síntese de um novo contexto.

Como espectador, tentei o tempo todo desvendar as cartas da verdade e da falsidade para entender o que o autor havia manipulado.

Richard Gadd denunciou recentemente esta busca insistente pelas pessoas supostamente encarnadas pelos personagens. Ele também explicou que seu objetivo era retratar seu torturador como um doente mental, e não como um monstro agressivo.

"Baby Reindeer" une a tudo isso um sentimento de terror (soberbamente mantido pela música original dos irmãos Galperine) que, a qualquer momento, pode explodir e ter o efeito de um tratamento de choque. Inclusive quando ele te faz rir.

O autor de Baby Reindeer (que confiou a produção a duas diretoras, Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch), quis assumidamente escrever uma obra de tirar o fôlego em todas as frentes, entre uma escrita linear explorando a forma mais crua do comportamento e as questões mais complexas dos personagens.

Longe da autopiedade, ele confronta hipóteses reconfortantes e imagens violentas em um verdadeiro "tour de force".

"Baby Reindeer" deve muito a Jessica Gunning no papel de Martha. O perseguidor é, por sua vez, frágil, tagarela, charmoso, aterrorizante, em suma, completamente louco.

Num grande gesto de inteligência e generosidade, Gunning aborda seu papel tocando o espectador bem no coração, da mesma forma que Donny se deixou enfeitiçar.

As telas obviamente não escapam ao modelo de ficcionalização da realidade. O verdadeiro crime é abundante. A produção "baseada em uma história real" está se tornando um gênero em si.

A verdade, portanto, talvez não seja como a ficção baseada numa história verdadeira a apresenta. Será alguma vez verdade, especialmente na nossa sociedade do espetáculo que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser?

Recentemente, uma mulher que afirma ser a inspiração de Martha revelou à imprensa que estava pensando em processar o ator-escritor. Ela explicou que era a verdadeira vítima deste caso e que era ele quem a perseguia.

No total, esta suposta verdadeira Martha teria enviado às suas vítimas 41.071 e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 744 tweets, 46 postagens no Facebook, 106 páginas manuscritas, além de presentes curiosos, incluindo pílulas para dormir.

O real não é mais o que era. Nossa era opaca entrelaça o real e o virtual, fatos e opiniões, uma vez que a "pós-verdade" já havia sido eleita a palavra do ano em 2016 e continua tão atual ainda nesses tempos em que vivemos.